Na segunda edição das Conversas APAN o desafio era pensar como podemos ajudar a construir um mundo melhor, aproveitando este momento de paragem que nos obrigou a reequacionar quase tudo. A ambição era alta, mas valeu bem a pena. D. José Tolentino de Mendonça trouxe-nos uma reflexão riquíssima que alimentou uma mesa redonda animada e igualmente rica e intensa. O debate de ideias que se seguiu à intervenção inicial esteve completamente alinhado com o espírito da intervenção do orador principal que citou Fernando Pessoa para defender que “o valor das coisas não está no tempo que duram, mas na intensidade com que acontecem”. E foi uma conversa intensa e valiosa aquela a que pudemos assistir em mais uma edição das Conversas APAN seguida atentamente por centenas de interessados através da plataforma APAN Future Lab.
O arquivista dos Arquivos Secretos do Vaticano e bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana trouxe-nos esta ideia que vivemos um tempo de transição para uma nova época histórica. Um tempo onde não temos todas as respostas e que é sobretudo um tempo de fazer perguntas. Mas ainda assim deu-nos pelo menos uma resposta. É tempo de contrabalançar. Contrabalançar os momentos de prontidão e servidão, com os momentos de ócio e vazio, “fundamentais para uma reflexão maior” defendeu D. Tolentino. Contrabalançar os momentos de cumprir objetivos com os momentos de acreditar e resistir. Contrabalançar o profissional com o pessoal. Redescobrir o verbo “contrabalançar” ajudar-nos-á a sermos melhor pessoas e consequentemente teremos um mundo melhor e uma sociedade melhor, onde o crescimento será mais justo e equilibrado.
Num contexto ocidental, as pessoas vivem numa espécie de “economia de guerra”, onde todos são mobilizados a participar. A digitalização e a atual formatação do trabalho têm ampliado este fenómeno. O facto de as pessoas não se conseguirem desligar do trabalho, com a ajuda das novas tecnologias que são uma porta de acesso a esse mundo a qualquer momento e em qualquer lugar, é algo que as esvazia. Para entrarmos num tempo novo da história, onde as pessoas não ficam agarradas ao “dia burocrático” e à “alegria sonâmbula”, tal como D. José Tolentino refere em citação de Alexandre O’Neill, é importante criar sociedades funcionais e, que em simultâneo, não tornem as pessoas burocratas da sua própria alma. A atividade é importante, mas é também essencial a passividade, para dar espaço a que o inconsciente se expresse.
Numa conversa moderada pela jornalista Graça Franco, os convidados para a mesa-redonda foram desafiados a refletir sobre os reptos lançados pelo Cardeal Português. João Ferrão, investigador e coordenador do Grupo de Investigação “Ambiente, Território e Sociedade”, João Pedro Tavares, Managing Director da StormHarbour, Pedro Bidarra, escritor e Founding Partner da Wengorovius & Bidarra e Catarina Barradas, Diretora de Marca EDP cumpriram o desafio com distinção. Aqui e ali, as discordâncias e as visões complementares deram ritmo e substância ao debate.
Se não vejamos, Pedro Bidarra discordou de D. José Tolentino, mas também lhe reconheceu méritos. “Eu nunca entendi que criação e produção fossem coisas diferentes. Eu percebo que aqui o Padre Tolentino esteja a dar-lhe um sentido diferente, está a falar da produção quase como a produção taylorista, de estarmos aqui e sermos escravos da máquina, do tempo e da reunião. Mas eu nunca entendi isso como diferente. Todo o processo criativo é um processo de produção – de produção de ideias novas, produção do que não foi feito, produção de soluções para problemas cujas soluções não são boas, ou não funcionam bem ou podem vir a ser melhores -, mas é sempre um processo de produção. E é um processo em que muita da produção é uma produção interior, de mastigar ideias, mastigar conceitos e de ler. Há duas coisas que o Padre Tolentino tem e que fazem muita falta. Primeiro, tem muito bom senso, e é uma coia que faz falta. Coisas básicas, como não valer a pena matarmo-nos a trabalhar porque há outras coisas importantes, que é importante criar gramáticas novas, novas maneiras de dizer as coisas, sobretudo numa altura de mudança. Depois tem outra coisa: tem muitos livros. Tem muitos livros lidos, muitos livros escritos, e livros é uma coisa que faz muita falta. Faz imensa falta o conhecimento. Faz imensa falta ler. Faz imensa falta ver pontos de vista novos, diferentes. E a leitura (…) é uma coisa que faz falta para entender o mundo.”
Já João Pedro Tavares aproveitou para refletir nas palavras de D. José Tolentino do ponto de vista das marcas e das organizações. “Na minha ótica, a liderança é dos serviços mais responsabilizantes que há. Não podemos exercer um cargo de liderança como um cargo de chefia, um cargo de poder, de “tirania” do líder a impor ordens, mas ser muito co participativo, escutar o outro, respeitar o outro. Usou-se aqui a palavra “recursos”. Muitas vezes tratamos as pessoas como recursos e eu acho que isso é um erro que cometemos no passado, porque hoje em dia temos recursos financeiros, recursos de equipamentos, recursos naturais, recursos tecnológicos que abundam e vão substituir os recursos humanos, e eu acho que as pessoas deveriam ser tratadas como pessoas. Aliás, uma das realidades que surgiu da pandemia foi considerar a família como um stakeholder muito importante. Eu creio que estamos numa mudança de época, em que deveríamos repensar nos modelos de liderança, os modelos de gestão. Como consultor, gosto de procurar desconstruir palavras e ir ao significado etimológico dessas mesmas palavras. A palavra “ócio”, não é não fazer nada, é um tempo de aprendizagem. É para ler, é ganhar cultura, o “ócio” é isso. O “negócio”, não é a negação do “ócio”, mas é, de facto, um tempo de atividade, de produção e de criatividade. Uma coisa e a outra têm de se contrabalançar.”
Para Catarina Barradas, porta-voz das marcas neste debate, “temos um consumidor muito mais conhecedor e as marcas não podem mentir. A mentira de uma marca não é sustentável porque é imediatamente apanhada e as redes sociais dão um poder enorme aos consumidores de ataque às marcas. Portanto, a história que a marca conta tem de ser real, tem de ser verdadeira. Estávamos a falar das cidades sustentáveis, a EDP tem os projetos todos de mobilidade, as comunidades solares, há uma série de projetos a que nós nos comprometemos que são reais e que sustentam aquilo a que nos comprometemos. O consumidor é um consumidor consciente. Nem todos os consumidores são conscientes, seria um mundo perfeito, continua a haver consumidores que o são por puro interesse, mas depois existe aquele consumidor mais consciente, que exige a verdade das marcas, especialmente em marcas que tenham impacto nas gerações futuras, a exigência é maior. Este é o caso da EDP, temos um compromisso sério de entregar aquilo a que nos comprometemos.”
Por sua vez, João Ferrão defendeu que as melhores soluções vêm de reflexões feitas com equilíbrio. “Há folhas em branco, não há cabeças em branco. Essa é a grande questão para mim. A folha pode estar em branco, as nossas cabeças não o estão. Há um legado e, portanto, a questão que se coloca é como é que nós individualmente e coletivamente valorizamos a memória, mas também o esquecimento. Porque para fazer coisas novas, nós temos de esquecer – esquecer rotinas, esquecer procedimentos, esquecer (…) dicotomias simplistas que não nos permitem ir mais além. Eu acho que o repto da transição epocal e desta ideia de contrabalançar deve ser vista neste sentido, de que todos nós, individualmente e coletivamente, felizmente temos um legado (…), mas temos de fazer uma gestão inteligente desse legado, valorizando o que é preciso memorizar para valorizar aquilo que é preciso esquecer. Acho que são tão doentes as sociedades que tudo esquecem e tudo recusam do passado, como aquelas que vivem exclusivamente do passado, pensando que o presente e o futuro são um mero prolongamento do passado. E é nesse jogo entre memória e esquecimento, que eu penso que se encontram muitas soluções.”
Para rever toda a sessão do passado dia 18 de junho basta entrar em APAN FUTURE LAB.