Uma “ovelha que põe ovos” à procura do cisne negro
In Revista Exame – Novembro 2020
LUÍS MADUREIRA/Consultor em inteligência competitiva
É um conceito pouco ortodoxo, mas talvez seja o que melhor assenta no papel dos especialistas em competitive intelligence, define Luís Madureira. São profissionais que, como ele, recolhem e analisam dados de várias proveniências para ajudar organizações a antecipar e integrar tendências e a tomar decisões – ainda que, quase sempre, sejam chamados para “apagar fogos” em vez de indicar o caminho.
Texto Paulo Zacarias Gomes Fotos Marcos Borga
Não acertam em tudo –na verdade, dizem que a regra é enganarem-se a longo prazo –, mas através dos seus frameworks de análise e interpretação de dados propõem-se dar indicações para ajudar as empresas a escolher e a crescer.
Luís Madureira é dos únicos profissionais acreditados em Portugal com o estatuto CIP II (master de competitive intelligence) e lidera, no País, o chapter da SCIP, comunidade de estrategas de inteligência competitiva. Em entrevista à EXAME, o especialista antevê o que pode acontecer neste domínio, nas próximas três décadas, muito por força da evolução tecnológica. E aborda a realidade nacional e internacional de um conjunto de ferramentas a que muitos recorrem, lamenta, só em caso de última necessidade.
O que lhe pedem normalmente? Que antecipe o comportamento do consumidor, para onde vai o mercado?
Dois grandes pedidos. Primeiro, “orienta-me e diz-me o que vai acontecer”, o early warning, qual tem de ser a estratégia agora. Depois, o foresight, aquilo que vai ser. Por exemplo, qual será o novo normal [pós-pandemia]? “Como posso posicionar-me para, em cinco anos, duplicar as minhas vendas?” Ou seja, identificar a oportunidade, o cenário futuro e o trajeto até lá. Pode ser através do perfil de um mercado ou de um concorrente, de um mapa conceptual de posicionamento, da análise de oportunidades e ameaças.
Onde é que a competitive intelligence se abastece, onde é que vai beber? E qual é o Graal sagrado, em termos de informação?
As fontes primárias são a cereja no topo do bolo, mas, com a quantidade de informação secundária que temos hoje, são quase negligenciáveis.
O que aí vem, a websemântica [extensão da World Wide Web que permite a computadores e humanos trabalharem em cooperação], ajudaria muito ao permitir reduzir o excesso de informação obtido nas pesquisas. Às vezes, podemos estar mesmo ao lado do “ouro” e não conseguirmos vê-lo.
Como é que Portugal se posiciona nesta matéria?
Empresas como a Galp ou a EDP têm departamentos internos de inteligência competitiva. Há outros casos, mas normalmente não cobrem todo o ambiente competitivo e não reportam ao CEO, mas sim, genericamente, a vendas, a marketing.
E servem para fazer o push da agenda dessas áreas. E não é isso que se pretende.
Que setores, em Portugal, teriam mais a ganhar com estas ferramentas?
É dificílimo responder, só analisando indústria a indústria. O critério é o potencial do impacto social, tecnológico e económico daquilo que eu vou encontrar. Por exemplo, no plano Costa Silva, começámos pelo fim, pelas soluções. Não pode ser. Tem de se começar por: onde estamos e onde é que poderíamos ser muito fortes. Ver os investimentos em infraestrutura para a frente, onde vão ser necessários, e não para trás, para aquilo em que estamos atrasados.
A nossa má posição em competitividade e produtividade na Europa está relacionada com alguma falta de inteligência competitiva?
Sim, é uma mistura. Não estamos habituados a decidir com dados; estamos habituados a decidir por instinto. Como já não somos muito organizados e é tudo à última hora, não pensamos muito bem as coisas.
Parece um desastre absoluto…
Não é bem um desastre absoluto. Somos muito bons a utilizar a nossa intuição. Na intuição estratégica, damos 10-0 a qualquer um. Se juntarmos a isto planeamento e gestão…
Estamos sempre a falar em temas sensíveis, perfis, dados usados para fintar a concorrência, o negócio… Quais são os limites éticos?
Máximos, temos um código de ética. Se tiver acesso a informação que ponha em causa o seu emprego ou o seu sustento, não posso passá-la. Não posso fazer-me passar por alguém que não sou para obter informação. Não posso vasculhar no lixo…
Não há fontes não éticas. O que pode haver é uma utilização não ética do meio.
Não há aí uma linha muito ténue em relação à espionagem industrial?
Eu não posso espiar, não posso estar a ouvir propositadamente a conversa do lado.
Já houve casos em que lhe pediram algo que percebesse que resvalava para um lado menos ético?
Nessas situações, faço-me desentendido e recuso o trabalho. Normalmente, isso não existe: as empresas estão relativamente sensíveis.
Há quem tenha medo de pedir um trabalho de inteligência competitiva, porque pensa exatamente isso. Mas há muita gente que vem da parte militar e tenta passar o que aprendeu aí para a parte privada.
E aí, às vezes, a coisa resvala um bocadinho.
O CEO de uma empresa que aparece numa notícia de uma revista cor-de-rosa associado a um escândalo. Usa essa informação? Pode ser útil numa campanha negra…
Nós não fazemos isso, nem alimentamos essa questão.
Conhece empresas que o façam?
Há todo o tipo de empresas no mercado, como agências de detetives. Mas isso não é inteligência competitiva, que deve ser uma garantia para as empresas de que estão a fazer a coisa bem feita, sem entrar em riscos éticos ou legais.
No entanto, eu, o Luís ou o Marcos [Borga, fotojornalista da EXAME], enquanto cidadãos e consumidores, não podemos excluir-nos desse universo que empresas como a sua analisam… Se eu quisesse dizer que, a partir de hoje, o Luís não utiliza qualquer informação minha, não conseguia fazê-lo.
Sim, não pode. Mas tem o direito de não partilhar, de não pôr nada em ambiente público que não queira partilhar. E isso aplica-se a tudo.
E as pessoas têm noção disso?
Não, não. Nenhuma. As pessoas não percebem que são o produto.
É uma inteligência sobre concorrência, mercado, concorrentes e clientes reservada só a entidades com fins lucrativos.
Não, já fizemos a inteligência competitiva para uma associação [APCE – Associação Portuguesa de Comunicação Empresarial] definir a sua estratégia como organização.
Mas por uma organização não ser lucrativa não quer dizer que não procure o lucro se não o tiver, desaparece. Inteligência competitiva é o desenvolvimento de insights acionáveis sobre o ambiente competitivo (desde fatores políticos, legais, clientes, consumidores, concorrentes) que nos permitam melhorar a performance das empresas. Não é a lógica da concorrência, do “eu sou melhor que o outro”, mas sim como é que eu faço o shaping da minha indústria.
Imagine que tenho um pequeno negócio aqui na Baixa de Lisboa, que deixou de correr bem nos últimos três meses. Onde é que me posiciono, com quem falo? É que, se calhar, este é um serviço que não é acessível a todos…
Todos fazemos inteligência competitiva. Se eu for falar com o responsável desse negócio, vou estruturar com a minha framework aquilo que ele tem e o que ele sabe para que, do outro lado, saiam os insights. Mas ele já tem os dados quase todos. Pode usar sistemas como o Google Alerts, o Google Trends, que são ferramentas grátis. Qualquer empresa pode fazer isto com um custo mínimo.
Mas há de haver alguma vantagem em contratar um consultor e não fazer as coisas por casa. Quão caro fica?
O insight há de ser melhor, porque essa pessoa é um especialista. O preço depende muito do âmbito, mas vai de umas centenas a mais de um milhão de euros.
Nos últimos dois, três anos, fenómenos como a guerra comercial EUA-China e, agora, a pandemia exigiram mais da inteligência competitiva? As empresas recorreram mais por causa disso?
Quando há uma crise é que as pessoas se lembram de que precisam de inteligência competitiva. Infelizmente, chamam-nos quando existe um problema, não para crescer mas para resolver o problema, o que é superingrato. Na pandemia as empresas ainda estão no momento da reação, que é o que não deviam fazer. Têm de reagir no imediato, navegar à vista no presente e preparar-se para o futuro. São três oportunidades para que o negócio corra muito mal. Acho que ninguém está a fazer esta análise. O cliente está a pensar para o agora, e isso não é bom.
Todos deviam estar a fazer planeamento de cenários.
Como se usam estas ferramentas para resolver flagelos como as alterações climáticas e as desigualdades? As empresas pedem-lhe isso?
Há muito potencial, mas não pedem. Só vão pedir quando lhes entrar no bolso à séria, quando tiverem um problema de reputação social. Mas nós [consumidores] não somos melhores: dizemos que preferimos produtos orgânicos, mas depois escolhemos o preço mais barato.
Com as técnicas e a informação a que se tem acesso, a tentação é pensar que nunca se engana e raramente tem dúvidas.
Tem sempre dúvidas. Nesta área, quem não tem dúvidas não é um bom profissional.
Tenho de estar sempre à procura do cisne negro, de algo que negue o meu conceito.
O profissional de inteligência competitiva é um bicho muito raro, é como se fosse uma ovelha que põe ovos, tem de fazer tudo: ser psicólogo, perceber o usuário, o consumidor, [ser] um ótimo comunicador, fazer gráficos maravilhosos, escrever maravilhosamente bem e ser um data scientist.
E nunca se engana?
Enganamo-nos sempre. Quando fazemos foresight, a regra seria enganarmo-nos. Os pressupostos são alterados até ao momento em que se tenta prever. Só quero estar 80% certo: assim já sei qual a direção e vou estar preparado para ela. Tenho de ter o melhor e o pior cenários: o Graal sagrado é gerir no futuro.