Regulação da publicidade: até quando vamos continuar a ignorar a mudança de paradigma?
Foi recentemente noticiada a polémica provocada nas redes sociais por um anúncio difundido pela Audi na China. O anúncio comparava as mulheres a carros usados, mostrando um casal pronto para casar quando a mãe do noivo interrompia a cerimónia para analisar a futura nora.
A polémica recorda a campanha publicitária da Pepsi sueca, que a propósito do jogo de apuramento para o Mundial de Futebol, utilizava a figura do jogador português Cristiano Ronaldo numa linha de comboio, associada ao slogan “Vamos passar por cima de Portugal”.
O que têm em comum estes dois casos, aparentemente tão distintos? Sobretudo o facto de nos alertarem para a mudança de paradigma na regulação da publicidade:
– ao nível do conteúdo das mensagens: o Código da Publicidade e o regime jurídico das Práticas Comerciais Desleais resultam de uma preocupação dominante com o engano dos consumidores, ignorando a transição para o apelo a sentimentos, que se verifica atualmente em detrimento do recurso a argumentos de natureza técnica e funcional. Na verdade, os problemas hoje suscitados pelo conteúdo das mensagens centram-se na discriminação em relação ao sexo, que resulta da ideia frequentemente veiculada de inferioridade da mulher, ou ainda na promoção de comportamentos violentos.
Ora, a regulação da publicidade não pode deixar de atender a esta mudança de paradigma, passando a incidir maioritariamente sobre o princípio da licitude e a conformidade com os valores constitucionais, cujo fundamento se encontra afinal na dignidade da pessoa humana. Num contexto económico, social e tecnológico em constante mutação, a dignidade da pessoa humana oferece um parâmetro de aferição do conteúdo das mensagens difundidas num mercado cada vez mais globalizado. Daqui decorre também o inevitável afastamento da tradicional centralidade do princípio da veracidade, que postula a conformidade dos anúncios com a realidade da oferta no que respeita especialmente às características dos produtos, como a origem, natureza, composição, propriedades e condições de aquisição.
– ao nível dos mecanismos sancionatórios: complementarmente à intervenção dos organismos de autodisciplina, a publicidade ilícita tem como mecanismos sancionatórios a tutela contraordenacional e judicial, nomeadamente com recurso à ação de cessação. No entanto, atendendo à limitação da celeridade e da eficácia destes mecanismos sancionatórios tradicionais, importa hoje reconhecer a relevância da reação espontânea do mercado, que se manifesta sobretudo em ambiente digital.
A emergência da sociedade da informação corresponde a uma disponibilidade crescente de conteúdos relevantes e independentes, conduzindo tendencialmente a uma diminuição do âmbito de aplicação da proibição da publicidade enganosa. Ou seja, os próprios consumidores passam agora a garantir autonomamente a proteção dos seus interesses económicos. É também neste contexto que a reação espontânea do mercado integra um relevante mecanismo sancionatório, na medida em que para além de determinar quase sempre a cessação voluntária da publicidade ilícita, condiciona as decisões de consumo e influencia a perceção emocional e simbólica da marca pelo público em geral, o que pode afetar a reputação económica dos profissionais.
Estes e outros temas serão abordados no curso sobre regulação da publicidade previsto para o próximo dia 11 de outubro.
Por: Ana Amorim